Algumas de suas crônicas e romances

ROMANCES
 
Autor: Rachel de Queiroz
Resumo do livro: João Miguel.
O romance se faz sobretudo com situações e fatos tomados como elementos de ambientaÇão, num presídio de interior, no Nordeste, em que avulta a figura de João Miguel. Pela sua presença e com suas relações humanas na cadeia, ele se torna o eixo do romance e o principal ângulo de observação e pesquisa da romancista. Forma-se assim um agrupamento humano, que continua a manter no presídio o sentido e os hábitos da vida cotidiana em liberdade. Compõem-no : Santa, companheira de João Miguel, e que o abandona pelo cabo Salu, maria Elói, Filó, Zé Milagreiro, uma visitante diária, Angélica - filha do coronel Nonato, também criminoso, mas preso somente pro ser inimigo do delegado ou por ser da oposição política - além de outros. Nesse caso, a prisão vigra apenas restrições circunstancial do espaço de relações, mas sem nenhum reflexo corretivo ou punitivo sobre os que aí vivem. É destacável a linguagem romancista, pela riqueza psicológica da frase, notadamente no diálogo. Considereda do ponto de vista regionaista, apresenta acentuadas características peculiares ao linguajar caboclo ou próprio da massa sertaneja.

O Quinze
Primeiro Plano - Vicente e Conceição

        O primeiro e mais popular romance de Rachel de Queiroz é O Quinze. O título se refere a grande seca de 1915, vivida pela escritora em sua infância. O romance se dá em dois planos, um enfocando o vaqueiro Chico Bento e sua família, o outro a relação afetiva de Vicente, rude proprietário e criador de gado, e Conceição, sua prima culta e professora.
        Conceição é apresentada como uma moça que gosta de ler vários livros, inclusive de tendências feministas e socialistas o que estranha a sua avó, Mãe Nácia - representante das velhas tradições. No período de férias, Conceição passava na fazenda da família, no Logradouro, perto do Quixadá. Apesar de ter 22 anos, não dizia pensar em casar, mas sempre se "engraçava" à seu primo Vicente. Ele era o proprietário que cuidava do gado, era rude e até mesmo selvagem.
        Com o advento da seca, a família de Mãe Nácia decide ir para cidade e deixar Vicente cuidando de tudo, resistindo. Trabalhava incessantemente para manter os animais vivos. Conceição, trabalhava agora no campo de concentração onde ficavam alojados os retirantes, e descobre que seu primo estava "de caso" com "uma caboclinha qualquer". Enquanto ela se revolta, Mãe Nácia à consola dizendo:
        "Minha filha, a vida é assim mesmo... Desde hoje que o mundo é mundo... Eu até acho os homens de hoje melhores."
        Vicente se encontra com Conceição e sem perceber confessa as temerosidades dela. Ela começa a trata-lo de modo indiferente. Vicente se ressente disso e não consegue entender a razão.
As irmã de Vicente armam um namoro entre ele e uma amiga, a Mariinha Garcia. Ele porém se espanta ao "saber" que estava namorando, dizendo que apenas era solícito para com ela e não tinha a menor intenção de comprometimento.
        Conceição percebe a diferença de vida entre ela e seu primo e a quase impossibilidade de comunicação. A seca termina e eles voltam para o Logradouro.

Segundo Plano - Chico Bento e sua família

        Sem dúvida a parte mais importante do livro. Apresenta a marcha trágica e penosa do vaqueiro Chico Bento com sua mulher e seus 5 filhos, representando os retirantes. Ele é forçado a abandonar a fazenda onde trabalhara. Junta algum dinheiro, compra mantimentos e uma burra para atravessar o sertão. Tinham o intuito de trabalhar no Norte, extraindo borracha.
        No percurso, em momento de grande fome, Josias, o filho mais novo, come mandioca crua, envenenando-se. Agonizou até a morte. O seu fim está bem descrito nessa passagem:
        "Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai.
        Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz."



        Uma cena marcante na vida do vaqueiro foi a de matar uma cabra e depois descobrir que tinha dono. Este o chamou de ladrão, e levou o resto da cabra para sua casa, dando-lhes apenas as tripas para saciarem. Léguas após, Chico Bento dá falta do seu filho mais velho Pedro. Chegando ao Aracape, lugar onde supunha que ele pudesse ser encontrado, avista um compadre que era o delegado. Recebem alguns mantimentos mas não é possível encontrar o filho. Ficam sabendo que o menino tinha fugido com comboeiros de cachaça. Notem:
        "Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?"


        Ao chegarem no campo de concentração, são reconhecidos por Conceição, sua comadre. Ela arranja um emprego para Chico Bento e passa a viver com um de seus filhos. Conseguem também uma passagem de trem e viajam para São Paulo, desistindo de trabalhar com a borracha.
        O mais famoso livro de Rachel de Queiroz é mediano com alguns bons momentos.
Fonte: http://www.detetivez.hpg.ig.com.br/literatura/resumo_livro/oquinze.htm
 CRÔNICAS

Agora quero falar de flores
Rachel de Queiroz

Flor tem moda como roupa de mulher. E as plantas do tempo antigo, flores, folhagens e ervas de cheiro, ninguém as cultiva mais. Agora são só aqueles estúpidos fícus italianos que parecem feitos de plástico, os antúrios e até tulipas.
Hoje em dia, principalmente nas cidades grandes, acabaram-se os manjericões.
E as manjeronas, e as alfavacas e de modo geral todas as ervas cheirosas.
Quem é que ainda planta alecrim? Quem é que ainda conhece malva-rosa?
Rosas, já cultivei rosas quando morava na Ilha do Governador, e era um problema obter mudas das velhas rosas tradicionais dos jardins brasileiros.
Rosas Paul-Neron que o povo chama de Palmeirão, Rosa Amélia com seu tom de rosa-, verdadeiro cor-de-rosa. Rosas de cacho com que as moças gostavam de enfeitar os cabelos. Rosas mariquinhas, que em linguagem de catálogo, se chamam com um nome horrível - floribundas - e que hoje só aparecem nas suas variedades mais complicadas. Rosas príncipe-negro, como se feitas de veludo sombrio.
E depois das rosas vem o capítulo dos cravos. Agora só conhecemos esses inexpressivos cravos de plantação industrial, enormes, uniformes - e sem perfume. Nos tempos de dantes, no interior, toda moça tinha à janela do seu quarto um jarro de barro com um craveiro. Cravos brancos, apertados, de rosado, que eram prenúncio de casamento. De cheiro tão forte que, aspirados com força, entonteciam. Cravos vermelhos, de dar aos namorados, em sinal de amor sem fim. Cravos que se guardavam secos dentro do livro de reza, como recordação. E além dos cravos havia as cravinas, singelas, dobradas, lisas e rajadas. E ainda havia, tão importante quando o dos cravos, o capítulo dos jasmins. Jasmim-estrela, que podia ser grande e pequeno, de pétalas tão leves e vulneráveis, que a flor parece feita só de perfume. Jasmim-do-céu, jasmim-laranja; deste tenho um pé junto ao alpendre do Não Me Deixes, que me embalsama o terreiro quando está em flor e se cobre de miniaturas douradas de laranjas, ao acabar da floração.
Jasmim-do-imperador, jasmim-de-são-josé, jasmim-caiano, jasmim-do-cabo, a glória dos velhos jardins, que se chama também gardênia.
E resedá? Meu Deus, que estranha anomalia da sensibilidade fez com que se abandonasse o resedá? E bogari? Ai, de bogari já nem falo que me dói o coração.
Miosótis, flor da inocência, ninguém vê mais também. E amores-perfeitos são dificílimos; ah, os amores-perfeitos de Guaramiranga, que minha prima Elsa acondicionava em caixinhas forradas de bambu japonês com os talos envoltos em algodão úmido, e eram o mais precioso dos presentes. E as angélicas, que nos livros se chamam tuberosas, e são as flores de espantar vampiro. Devo ter qualquer pingo de sangue de vampiro, porque sempre detestei angélicas.
Desapareceram as sebes e os caramanchões de madressilvas - madressilvas que cheiram a abelhas e a mel. E, falando em caramanchões, sumiram-se também os estefanotes e as simpatias com seus maciços vermelhos, e uma trepadeira de cachos brancos e arroxeados, que andou muito em moda em meados do século passado (imagine, século 20 já está no rol dos séculos passados!) e ganhou o nome de Coelho Netto.
Todas essas flores para mim são saudades da infância, pois ambas as minhas avós eram jardineiras empedernidas, que jamais fizeram uma viagem sem uma bagagem subsidiária de embrulhinhos com galhos de mudas, batatas, bulbos, sementes - e até mesmo vasos com plantas, aparentemente preciosíssimas, pois era mister carregá-las no colo, durante os percursos de trem.
Nos Estados Unidos, na casa de George Washington, em Mount Vernon, na velha Williamsburg que Rockefeller restaurou, tão importante quanto a restauração dos edifícios é a recomposição dos jardins com o seu traçado e as suas plantas do século 18. Fizeram pesquisas minuciosas e, em muitos casos, tiveram de ir procurar na Europa os espécimes esquecidos ou transformados, hibridados e deturpados pela moderna jardinagem.
No Brasil, nós ainda não chegamos a esse eterno retorno ao passado. Há os jardineiros sofisticados das casas ricas com os arranjos pedantes de plantas de importação recente, e há o comércio de flores, que se reduz aos produtos de fácil cultivo, de boa resistência e venda fácil. Comércio de que é expoente típico o horrendo agapanto, a flor mais feia e triste do mundo, com a qual se insultam os mortos no Dia de Finados, cobrindo-lhes os túmulos com suas umbelas sinistras. Eu, defunta, chegarei às piores represálias, puxarei pelo pé, arrastarei correntões, aparecerei de mortalha fosforescente, soltarei gargalhadas macabras, assombrarei de todas as maneiras o herdeiro mal-agradecido que me puser agapantos na cova. Perdôo tudo, até anulação de testamento e enterro de terceira classe; mas agapanto não.

O Estado de São Paulo (São Paulo -SP) em 16/11/2002

 
Alfazema, velhice e mocidade

Rachel de Queiroz

Todo mundo sabe: já não se namora mais como antigamente. Se a palavra é a mesma, o sentido é outro. Dantes era todo aquele ritual cortês - primeiro os olhares que se encontravam de longe, começando intermitente e furtivo, ia depois ficando mais fixo (na minha longínqua infância esses olhares se chamavam "tirar linha", - lembrai-vos anciãs contemporâneas?) Do olhar se passava ao sorriso, em manobras que poderiam levar horas e até dias consecutivos. Depois era tentar um encontro: passar perto, olhar sem falar, pois a moça quase nunca andava só. Após um infinito de tempo, chegava-se então à abordagem. Por exemplo, o rapaz subia ao estribo do bonde, pedia licença para sentar no banco em que ela vinha. Licença dada, ele enxugava a testa e fazia a declaração. Aceito o dito de amor, começa propriamente o namoro.
Me lembro de quando eu tinha uns 12 para 13 anos e, por acaso raríssimo, voltava sozinha do colégio. Desci do bonde no fim da linha e ia rápido para casa, um pouco além, quando senti que um rapaz me acompanhava. Ao me alcançar, ele me tocou de leve no braço, me fixou com uns olhos de um azul desbotado, quase branco e falou rouco: "Senhorita, amo-a, e posso ser correspondido?"
Levei um susto danado, desviei a vista daqueles olhos sem cor, e meti o pé na carreira. Bati com força o portãozinho do jardim, entrei em casa como um pé de vento, tranquei-me no quarto. Me atirei na cama, sem fôlego, o coração na boca.
Afinal era aquela a minha primeira "declaração".
Há uma carta do meu tataravô pedindo em casamento aquela que veio a ser minha tataravó que terminava nos seguintes termos:
"Recebi os ternos afetos que respeitosamente vos prosterna, o vosso fiel amante.
Fco. J-M."
Tenho comigo a carta, é linda. Como se vê a palavra "amante" era então empregada no seu sentido real - amante é aquele que ama. Com o andar do tempo, a palavra foi mudando de sentido e passou a significar os dois que se amam de amor ilegal, ou mais objetivamente aquele que pratica amor com a mulher de outro. Ou a própria mulher do outro também é amante do amante.
Por idêntica evolução semântica, passou a palavra namorado e os que poucos anos atrás seriam chamados discriminatoriamente de amante, passa a se chamar docemente "namorado". Os que se amam, qualquer que seja o tipo e o aspecto legal da sua relação, são namorados e pronto.
Isto posto, falemos daqui, da Praia do Leblon: os namorados não são tantos que engarrafem o trânsito no calçadão, mas chegam a albaroar com os corredores e joguistas que pedem desculpas e seguem em frente, tão velozes que a gente espera até que apitem.
Já na areia, a área é mais desimpedida. Um par de adolescentes, enlaçados como dois lutadores, não chego a dizer que "faz amor", mas se entrega a uma ginástica desesperada, cada um procurando morder a nuca do outro, ao que parece. De repente, rolam na areia e já não são amantes, são como filhotes brincalhões em briga simulada.
Um casal de velhos faz a sua marcha higiênica. Ele veste calção esportivo e camiseta, calça tênis modernosos, sombreia a face com pala de plástico verde. Nos trinques. Seria talvez um modelo de elegância se o velho corpo não lhe desmentisse as graças - desde as coxas magras, onde o fêmur ressalta, à frente das pelancas de músculos, o pescoço que é só veia e tendão, a calva que emerge da abertura da pala, estriada de veias roxas, salpicada de manchas cor de ferrugem. A velha que o segue ao lado, com suas pernas curtas tentando acompanhá-lo a passadas largas, veste bermuda e blusão e usa chapéu de palha. Como dizia o Dr. Macedinho, de um de seus personagens da Moreninha, não é feia nem bonita - é uma velha. Mas é claro que o idoso magruço continua a ser o seu galã preferido, tal a ternura com que o contempla, segura-lhe as pontas dos dedos, acompanhando-lhe o rítmo dos braços que cortam o vento do mar, como um nadador. E o sorriso que lhe ilumina a face esfogueada, no esforço de acompanhar o dono. Ou o líder. 
Há também pares correndo. Curioso: quase todos brigam enquanto correm.
De repente, surge no mesmo calçadão a musa ruiva, sardenta e linda. É toda longas pernas, pequeno busto empinado, barriga para dentro, bumbum em saliências esferoidais. Enverga uma sunga (calção, bermudinha?) não sei como se chama: brilha como cetim, é ornada de rendas, parece que ela saiu da alcova com sua calcinha, em meio à toalete. Engraçado, seria de esperar que semelhante deusa arrastasse após si um batalhão de moços, contudo só uns dois se vê, a distância prudente. Dois enxundiosos quarentões que descansam no meio-fio, é que vêem em primeiro lugar a sombra da moça que o sol desenha, movediça no pavimento, e se viram ambos, esticam o toutiço, arreganham a dentadura, dizem coisas entre si, sem tirar os olhos da menina que agora já lhes dá as costas, com todos os esplendores da fachada retrô.
E fica no ar um cheiro de alfazema e mocidade.

Um pouco de nostalgia
 Rachel de Queiroz

Afinal, se me dão licença, quem passa dos 90 direito a algum saudosismo. É que, olhando o mar, lembrei dos bons tempos dos navios, quando só se viajava pelas costas do Brasil nos Itas (os decantados Itas do Norte) e também os menos charmosos navios do Loide. Companhia Nacional de Navegação Costeira, chamavam-se oficialmente os Itas. E recebiam todos os barcos da frota esse nome de Ita porque o dono da Companhia se chamava Laje, e laje é pedra, e pedra em tupi é ita. Tinha esse magnata Laje outro motivo de celebridade:
Capturara o amor da maior contralto vivente, Gabriela Benzansoni; casou com ela e deu-lhe por menagem a mansão dentro daquele parque próximo ao Jardim Botânico, retirando-a dos palcos do mundo. A Bezansoni ficou cantando só para ele.
Mas veio a guerra e os submarinos alemães torpedearam toda a frota Laje, junto com os navios do Loide. E o pouco que não foi para o fundo do mar sucateou por aí, acabou.
Aliás, já nos deram fim a todos os transportes que não sejam aéreos:
acabaram os navios, acabaram os trens. Ficaram os caminhões e ônibus, já todos obsoletos, expulsos pelos aviões, quer de gente, quer de carga. E naqueles brutos airbus nos sentimos mesmo como carga, como frangos num granjal.
Mas voltando aos Itas: cada viagem neles era uma glória. Navio do Norte para o Sul (ainda se falava pouco em Nordeste) era para cada família como uma estação de águas, uma semana em Caxambu ou Lambari. Preparava-se o enxoval da viagem, guardado nas grandes malas de camarote: os vestidos para o dia, de linho e com gola de marinheiro, e os de noite, de seda, com manga cavada.
O navio todo era um grande playground, onde se brincava em jogos de convés (ainda não havia piscinas), se almoçava e se jantava ao som de orquestra, em boa companhia. Grande honra era sentar à mesa do comandante. Dançava-se depois do jantar, toda noite sem falta, até mesmo quando o navio ancorava durante dias, em Areia Branca, para carregar sal.
A vida de bordo era sempre uma festa. Onde, acima de tudo, se namorava.
Havia para isso os estudantes que faziam curso na Bahia e no Rio; os antigos caixeiros-viajantes que já então se diziam "representantes de firmas"; e jovens políticos, e moços ricos nos camarotes de luxo. Contudo, os mais disputados dos galãs marítimos eram os próprios oficiais de bordo, com o seu charme de homens do mar, que a gente chamava de "cisnes brancos", seu andar macio e silencioso no solado de borracha: pilotos, imediato, até radiotelegrafistas. E as meninas ficavam injuriadas se descobriam que o médico era gordo ou notoriamente casado. O comandante era um caso especial.
Fazendo o gênero "velho lobo-do-mar", galante ou retraído mas sempre envolto, para as moças no halo que lhe dava a farda branca imaculada, o quepe agaloado de ouro, a autoridade de rei dentro do navio.
Cada porto era um evento especial: vinham os amigos, os parentes, receber os passageiros, levá-los a almoçar e passear pela cidade.
E a chegada ao Rio era a coroa da travessia. Das alturas de Cabo Frio começava a expectativa. Quase sempre o navio entrava na barra pela manhã com a Guanabara toda envolta em brumas. Passavam-se os fortes, passava o Mosteiro de São Bento, e então se atracava no cais, a orquestra de bordo tocando a Cidade Maravilhosa. E a gente trajando o tailleur feito especialmente para o desembarque. Os tios em grupo se agitavam lá embaixo e quase toda menina tinha um primo especial para lhe acenar.
Esquecidos ficavam os belos amores de bordo. Como vêem, era muito bom, naquele tempo, tomar um Ita no Norte.

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 24/08/2002 

Bonecas russas
Rachel de Queiroz

Não me lembro como se chamam as tais bonecas folclóricas russas: são as que são ocas e abre-se a boneca maior e dentro dela há uma menor, e dentro dessa outra menor ainda, e depois outra e mais outra, até chegar à última, que é uma simples miniatura de boneca. No mesmo gênero, também é aquele de fadas: “Lá no mar tem uma ilha, dentro da ilha tem um castelo, dentro do castelo tem uma torre, dentro da torre tem um quarto, dentro do quarto tem uma arca, dentro da arca tem uma caixa, dentro da caixa tem um cofre, dentro do cofre tem um frasco, dentro do frasco tem uma pomba, dentro da pomba tem um ovo, dentro do ovo tem uma chave e é essa chave que abre a porta da prisão onde está a princesa encantada”.
Pois a gente também é assim. A princípio eu pensava que, com a passagem das diferentes idades do homem, o maior ia substituindo o menor, quero dizer, o menino ficava no lugar do nenê, o adolescente no do menino, o moço no adolescente, o homem feito no do moço, o de meia-idade no do homem feito, o velho no lugar do de meia-idade e por fim o defunto no lugar de todos. Mas depois descobri que os indivíduos passados não desaparecem, se incorporam, ou, antes, o indivíduo novo incorpora os superados como se os devorasse, e uns vão ficando dentro dos outros, tal como as bonecas russas do começo da história.
E assim, dentro de cada um de nós, a gente procurando sempre encontra os perfis superpostos, encartados um por dentro do outro, sem se misturarem. É só saber como esgaravatar e você descobrirá fácil no sentencioso senhor de cinqüenta anos o inseguro pai de família principiante que ele foi aos trinta anos ou o belo atleta descuidado que foi aos dezoito. Ali está cada um, aparentemente esquecido mas incólume. E estanques todos. Porque um não penetra no outro e aparentemente um não tem o mínimo em comum com o outro; nem sequer um influi no outro - as mais das vezes são antípodas e adversários.
Faça uma experiência: pegue um livro, uma foto, reveja um filme, encontre alguém, qualquer desses serve, contanto se refira especificamente a determinado tempo de sua vida. E então magicamente se suscita aquele instante perdido do passado, com uma força de momento atual. Espantado, você se indaga: então esse fui eu? Que tem em comum com o você de hoje aquele estranho que subitamente acordou ao apelo do seu nome, debaixo da sua pele? Terá em comum só mesmo o nome e a pele, porque o resto, no corpo e na alma, tudo é outro, deformado ou gasto, mas sempre diferente. Você é outro, outro. E quase não acredita ter sido você também aquele rapaz desvairado, ou sonso, ou bobo e terrivelmente inexperiente que de súbito emergiu de dentro dos seus ossos e das suas velhas lembranças.
Em sua avó venerável você também pode descobrir a rapariga inconseqüente que ela foi um dia, e no seu severo confessor de hoje o seminarista em crise religiosa de trinta anos atrás. É só saber procurar. A gente diz disso: “ águas passadas” . Mas talvez seja melhor dizer águas represadas, águas recalcadas. Porque basta bater na pedra, a fonte emerge, o que não aconteceria se as águas fossem passadas realmente.
Publicado em: 23/09/00, Correio Braziliense – Brasília – DF

Livro, televisão, internet 
Rachel de Queiroz

É dizer como o outro: já que o homem não vai ao livro, que vá o livro ao homem. Multipliquem-se as feiras de livros pelas praças da cidade, e não só desta, como de todas as cidades do interior. Ah, o interior! As livrarias são poucas, a distribuição das editoras não é boa. Nunca se pisa em cidade do interior sem escutar dos interessados a queixa de que livro de fulano, que está muito falado, não apareceu à venda na terra. Talvez fosse um êxito inesperado a inauguração de feiras de livros por este Brasil afora: o pessoal ver os livros assim de cara como a farinha e os legumes. Poder mexer, palpar, olhar as figuras, se interessar. Seria talvez uma revolução.
É claro que, com a vida difícil de hoje em dia, o pessoal anda primeiramente preocupado em juntar algum no bolso para adquirir o pão, a roupa e o teto: e assim se esquece que a alma também precisa de alimento, esquece aquela velha história de que nem só de pão vive o homem, e vai deixando o livro de lado.
Mas assim mesmo, com todas as dificuldades da vida, o fato é que, para terra tão grande, vende-se muito pouco livro no Brasil. Será que o povo não tem mais tempo para ler? Nas casas mais humildes de cidades do interior aparece com notável freqüência a antena de TV. E se tem antena, tem TV lá dentro.
O homem tem posto em uso invenções estupendas para o seu divertimento, mas a verdade é que não há milagre eletrônico capaz de superar o poder de entretenimento de um bom livro. A TV é ótima mas você tem de depender dos caprichos da programação, escuta e vê o que não pediu, tem de se submeter a horários criados pelos outros de acordo com as conveniências deles, não da sua, e sabe que está sendo incluído numa categoria subjetiva a que eles chamam de público-alvo, tudo catalogado como roupa em gaveta: roupa chique (classe A e B), gavetas de cima; roupas de uso doméstico e de trabalho, gavetas do meio; e lá embaixo, a roupa descombinada e sem grife dos programas de auditório. E ainda não falei na praga maior, que é o anúncio. O eterno, inevitável, apavorante anúncio, mal necessário, sim, que chateia durante meia hora para nos deixar ver um programa de cinco minutos.
Cinema é muito bom, mas é caro, longe de casa, exige que se saia, mude de roupa, e também, só se vêem as fitas que estão em cartaz, e não aquelas que a gente desejaria.
O livro, não. Apesar de ter subido de preço, ainda custa barato, mais barato do que um ramo de rosas para a namorada ou um jantar no restaurante. Uma noitada em boate, com show e bebida, dá para comprar algumas dezenas de volumes - quer dizer, divertimento para meses e até ano, se o leitor é vagaroso. O livro não exige capital nem maquinismo, não tem anúncio - e não tem patrocinador! A sua variedade tem como limite o infinito; discute com você todos os assuntos que a mente humana já tratou, apresenta-o às personalidades mais ilustres e lhe conta os seus segredos. Você quer saber as últimas teorias científicas sobre o espaço cósmico, os ritos funerários dos egípcios, a série cronológica dos amantes de Catarina, a Grande? Há sempre um livro que lhe dará a informação. E se o que você deseja é sentir a presença inefável dos grandes poetas, a imaginação dos maiores ficcionistas - ah, eles estão todos aí, se oferecendo à sua mão, na hora em que você os convocar. Poemas, romances, contos, narrativas, memórias - o que a mente do homem criou, desde que sabe escrever - e isso já faz séculos, milênios - está tudo nos livros, guardado nos livros, como um tesouro para seu uso.
E a feira de livros, além de colocar o livro ao alcance fácil do comprador, a preços de desconto, ainda tem a parte social e simpática: as festas de autores, em que não só o livro, mas os que os escrevem, os autores, são convocados a se apresentar ao povo, num contato democrático e cordial. Aí você, leitor, terá oportunidade de conhecer em carne e osso seu romancista predileto, o seu poeta de estimação ou o seu erudito de confiança.
Eu sei, eu sei: todos vocês, jovens, vão dizer - "Mas hoje, toda informação que quisermos, vamos encontrar na internet." Mas é isso: internet é informação, é trabalho, não traz prazer ou divertimento. Pois então vá experimentar ler, na íntegra, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, ou Guerra e Paz, de Tolstoi, pela internet. E depois me diga.

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 19/10/2002

Fonte: http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=1127

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